
O Vampiro Acadêmico
“Os vampiros são reais e falsos ao mesmo tempo. Eles são falsos na natureza, mas reais no imaginário das pessoas que acreditam.”
- Augustin Calmet
Gabriel Elysio Maia Braga, de 29 anos, é professor assistente, historiador, graduado e mestre pela Universidade Federal do Paraná e doutor, com sanduíche na Universidade de Sorbonne. Para a dissertação de mestrado, Gabriel estudou a questão do sobrenatural com enfoque em vampiros na região da França. Além de historiador, Gabriel faz parte do Podcast República do Medo. O podcast existe desde 2016, mas entrou em agosto de 2019. Antes de virar membro da bancada do podcast, ele já havia gravado cinco episódios. Um deles, sobre vampiros.
Mas antes disso, o historiador sempre demonstrou que era amante do terror. O primeiro contato dele com a figura do vampiro vem da infância. Recorda que foi a partir de desenhos animados que viu o mito pela primeira vez. “Sempre tinha aqueles episódios de Halloween, de terror, nos desenhos, então provavelmente, o patolino vampiro.” Ele olha para o lado pensativo, antes de sua feição mudar com uma lembrança particular. “Ah, claro, o episódio do Zé do Picadinho do Bob Esponja que tem O Nosferatu.” Esse episódio do desenho é da segunda temporada da animação, e mostra o protagonista Bob Esponja assustado com uma “lenda” contada por Lula Molusco de um peixe com mão de espátula. No entanto, muitas coisas estranhas acontecem como as luzes do Siri Cascudo apagando sozinhas e ligações misteriosas. No fim do episódio descobrimos que na verdade era tudo um peixe ansioso com medo de fazer ligações e quem estava ligando e desligando o interruptor era o vampiro clássico ‘O Nosferatu’.

Gabriel Elysio Maia Braga
defendendo o doutorado.
Foto: Gabriel Maia Braga
O historiador sempre foi muito fã de filmes de terror, um dos primeiros filmes que ele assistiu foi Conde Drácula (1970) com o ator Christopher Lee como o emblemático vampiro.
Apesar de definir como algo macabro, Gabriel Braga se viu fascinado pela figura sangrenta e violenta. “É um filme da Hammer, aquela produtora inglesa, então tem aquele sangue vermelhão vivo, que não tem nada a ver com a realidade mas chama atenção.” Gabriel continua comentando que outra coisa que despertou o seu interesse foi a dualidade: o limbo entre estar vivo e morto, ser bom ou mau.
Além disso, os diferentes arquétipos, desde o vampiro nobre para o sedutor ou o rebelde, demonstrando a versatilidade da figura dependendo de quem a imagine. “Cada década tem o seu estilo de vampiro diferente, mas eles ainda são vampiros.”
Gabriel disse que a sua pesquisa inicialmente se tratava sobre cinema novo, mas não estava tão feliz com o jeito que estava se desenrolando. Decidiu então fazer o projeto voltado à História Moderna. A professora pediu para os alunos escolhessem um livro do século XIX e lhe dissessem que tipo de teorias históricas podiam conversar com aquela narrativa.
“Eu acabei pegando Drácula, e quando fui pesquisar eu encontrei referências a um monge francês do século dezoito que escreveu sobre vampiros.” Um sentimento de curiosidade despertou dentro dele, um monge beneditino escrever sobre algo sobrenatural, ainda mais essas criaturas parecia algo estranho para ele. Isso então virou o seu objeto de pesquisa. A referência é um documento de Antoine Augustin Calmet, escrito totalmente em francês com mil páginas.
“Era loucura porque eu e a professora que me orientou teríamos que ver esse documento totalmente em francês.” Recordou rindo. “Tem até em inglês, mas pagar em dólar seria algo difícil de fazer. Além de ser uma tradução, é mais interessante trabalhar com o documento original se a gente puder. Mas consegui me virar com o francês.”
Nesse livro, Calmet trazia diversos relatos de vampiros e investigava se era verdade ou não. Por ser muito conteúdo somente para o TCC, ele continuou com o documento como objeto de pesquisa para o mestrado.
Outra pessoa que segue no meio acadêmico com a temática de vampiros para o TCC é Isabella Rizh, de 22 anos, e é aluna de história da Universidade Estadual do Paraná. Além de navegar no mito do vampiro, ela se aprofunda mais especificamente em Carmilla de Sheridan Le Fanu.
O primeiro contato de Isabella com vampiros foi quando criança. Não lembra o momento exato mas, recorda que como a maioria das crianças, ela adorava bonecas, sempre foi rodeada de Barbies e um dia na Internet descobriu a marca Monster High. “Achei bem diferente, e a que eu gostei de cara foi a Draculaura. Não sei se foi por ela ser rosa, eu não sei.” Isabella lembra que não gostava de Crepúsculo na época e a marca de bonecas despertou um interesse nessas criaturas ainda durante a infância.

Isabella Rizh
Foto: Isabela Rizh
A franquia de Monster High ficou famosa por fazer bonecas inspiradas nos monstros que conhecemos na literatura e cultura pop. Draculaura, é filha do Conde Drácula, e desde a sua primeira versão, tem aspectos góticos, misturando rosa e prto no seu cabelo e roupas. A partir desse momento Isabella se viu mais interessada no assunto e resolveu pesquisar mais sobre os vampiros. Hoje em dia, o contato e o fascínio virou algo acadêmico.
Em seu trabalho de pesquisa, Isabella analisa a questão de gênero dentro da obra. Partiu da ideia “mulher monstro” que conheceu em uma aula de ‘História do Brasil’ quando uma professora passou dissertações para os alunos sobre magia e medicina no Brasil colonial.
Um desses textos, falava sobre o corpo da mulher ser percebido pela sociedade como um ambiente de deus e o diabo. A mulher era sagrada, por poder conceber e gerar crianças, mas um monstro e profano por seu corpo também ser um local ‘desconhecido’.

Capa do livro “Carmilla”
Foto: Isabella Rizh
Em Carmilla, a sua monstruosidade vai além dela ser uma vampira, e sim, ao ser uma mulher sexual, enigmática, erótica e lésbica, que quebra as expectativas de gênero da era vitoriana.
“Foi muito gratificante ver as peças se encaixando, algo que estudei na faculdade poder ser utilizado de base para uma coisa que para mim era, somente um entretenimento”. No começo, tinha dúvidas se iria conseguir estudar vampiros, mas conheceu o trabalho de Gabriel Braga por meio do podcast República do Medo e ficou fascinada, vendo que sim, era possível fazer isso no meio acadêmico.
Isabella também diz que Carmilla poderia ter outra perspectiva mais direta caso tivesse sido escrita por uma mulher. Há sim, elementos que mostram o romance entre Laura e Carmilla, mas o fato de Le Fanu ser um homem, hétero, tirou um pouco da profundidade que poderiamos ter quando levado em conta outras obras da época como ‘O Retrato de Dorian Gray’ de Oscar Wilde. Sheridan Le Fanu inclusive, na sua escrita demoniza mulheres e usa da homossexualidade feminina como algo profano, que conversa também com a ideia do vampirismo como punição para quem não escolhe seguir a religião.
Dentro do mundo acadêmico, Gabriel enxerga o que aconteceu com ele em termos de pesquisa como algo parecido com o que aconteceu com Augustin Calmet. “Na época que ele escreveu esse grande tratado, as pessoas achavam que ele estava senil.” Ele conta que o monge era respeitado por diversas interpretações bíblicas e de repente, ao decidir escrever sobre vampiros, foi dito como louco. “Quando eu falava do meu tema de pesquisa, as pessoas me diziam ‘Mas você sabe que vampiro não existe né?’ Uma professora, inclusive, me disse que eu tinha que pesquisar um tema de história.”
Já Isabella conta um episódio um pouco diferente. Foi numa feira de convenções em uma escola junto com a sua professora. Quando a orientadora mencionava o seu tema de pesquisa, muitas pessoas reagiram bem. “É claro que vai ter gente que vai achar meu tema uma besteira, mas é legal poder ver algumas pessoas animadas com o meu tema de pesquisa.”
“Acho que no começo temos um pensamento de que o que fazemos não é um tema muito sério, ou acadêmico o suficiente, mas ao se aproximar de pesquisas parecidas com a sua, elas validam você”. Diz, chamando atenção à falta de trabalhos acadêmicos sobre o assunto no Brasil. “Falar com o Gabriel que foi convidado para assistir a minha primeira banca foi uma troca muito boa, ele citava coisas que já sabia por conta do trabalho dele.” Porém, Isabella também conta que os seus pais não sabem o seu tema de pesquisa, com receio de ser julgada. “Eu falo que estou indo bem, mas não vou muito a fundo”.

Isabella Rizh
Foto: Isabela Rizh
Anotações pessoais de Isabella em livro acadêmico.
Foto: Isabella Rizh



E-book em inglês de “Dissertação de Aparicões de Anjos, Demônios e aparições de vampiros” por Augustin Calmet
Foto: Isabella Rizh
No mestrado, apesar do tema diferente, a pesquisa de Gabriel foi bastante tradicional. Os colegas do meio acadêmico tomavam um susto com o tema, mas a seriedade foi a mesma do que teria acontecido com qualquer outra pesquisa. “É uma questão da história da medicina, com a própria história da filosofia, até a religião. Eles estão tentando entender o que significa a morte e o natural.”
Quando perguntavam a ele se vampiros existiam, Gabriel respondia: Se existem ou não, não importa. O que era importante era que as pessoas da época acreditavam e as consequências a partir disso eram reais.
Existem evidências, tem pessoas que temem essas criaturas, que evacuam suas cidades pelo medo. “Era um medo real, que movimentava as pessoas da época, que temiam que um tio poderia voltar e atormentar todos ao seu redor”. Isabella comenta.
Assim como Gabriel, ela defende: tinham pessoas da época que sentiam que suas vidas eram atrapalhadas por aquele mito, fontes que relataram aparecimentos de supostos vampiros e geravam medo. É mais sobre observar o quanto essa criatura mudou as crenças populares do que defender se existem ou não. E como, algo que era restrito do leste europeu se espalha pelo mundo.
Gabriel relembra um episódio de preconceito acadêmico. Em 2022, foi convidado por alguns alunos para fazer uma apresentação sobre o tema de doutorado: possessões demoníacas. Um colega de departamento assistiu a palestra, e o historiador notou um semblante incomodado, a forma que apontava para os slides e cochichava com os alunos.
Esse colega começou a dizer que o tema era absurdo, e duvidava que a CAPES tivesse financiado dando bolsa para um trabalho sobre possessão demoníaca. “Ele dizia que tinha que pesquisar a história de evoluções, outros temas mais convencionais, e não coisas que não existem”. Teve outra vez que em uma banca de concurso que o perguntaram: Como você vai explicar para um aluno numa sala de aula que o seu tema é importante? “Você vê que tem uma desconfiança, que acham que seu objeto de pesquisa é mais fácil ou somente por ser divertido”.
Isabella teve medo de sofrer uma situação parecida.
“Eu fui meio envergonhada atrás de minha orientadora, falando que queria tratar essa temática de vampiros, dentro do livro de Carmilla, com medo da reação dela.”
Lembra. No fim, a professora apoiou a ideia, e disse que conhecia Gabriel e os trabalhos do historiador com o tema.
Na apresentação da primeira banca de TCC, Isabella foi elogiada pela banca, pela orientadora e, inclusive, por Gabriel.
Apesar do tema, Gabriel Braga teve um trabalho tão árduo como todos os outros no mestrado. Leu diversos livros, teve que gastar dinheiro para adquirir alguns e virou noites fazendo a sua dissertação como qualquer outro aluno. O tema, podia ser atípico, mas a seriedade no trabalho foi a mesma. Muitos documentos estavam em outra língua, eram difíceis de adquirir. “É um esforço que eu teria que fazer em qualquer outro tema. Ler sobre vampiros é importante também para saber como um conhecimento é formado”.
E, mesmo não tendo sido questionada pelos professores sobre a escolha de tema como Gabriel, Isabella relata uma dificuldade: achar trabalhos acadêmicos que falem de vampiros, os analisem mas que não falem de Drácula. Além de não estar voltado à questão de gênero, eles não se aprofundaram na mitologia do leste europeu. Coisa que a pesquisa de Gabriel Braga a ajudou. “Basicamente, as minhas fontes são as pesquisas do Gabriel e as fontes dele”.
Além disso, um ponto interessante foi observar, assim como Gabriel, o preconceito que a população do oeste europeu tinha com o leste. Não satisfeita com diversas pesquisas que falavam do assunto como “racismo” ou “orientalismo”, já que se baseia no oriente médio como invenção do ocidente. Isabella conversou bastante com os professores e chegaram à conclusão de um termo melhor: Euro-orientalismo. “O livro de pesquisa do Gabriel também fala isso, que os vampiros eram uma punição para a Rússia por não terem a religião certa.”
Isabella recorda que aprendeu muito também sobre o vampiro folclórico e as influências dessas lendas na visão que temos hoje das criaturas. O vampiro tem um folclore particular que influencia muito a cultura pop, literatura e arte atualmente. “Até a estética do vampiro tem uma história.” diz, e cita o exemplo de não poder andar no sol. Em algumas culturas isso não acontecia, mas ficou popularmente conhecido por causa do filme “Nosferatu” em 1922.
Além disso a ideia do vampiro como ser erótico. Essa percepção deve ser a mais conhecida atualmente, com diversas visões desde Carmilla até mais recentemente como, Entrevista com o Vampiro e a série True Blood. Isso não surgiu do nada e pode ser explicado pelas descrições do teólogo Michael Ranft, que diz que um dos sinais que um corpo voltou à vida (este corpo, nos relatos sendo estritamente homens) era ter uma constante ereção. Além disso, muitas lendas do leste europeu, falam do vampiro como um homem que volta para consumar o amor com a esposa viúva novamente.
O historiador também diz que ao longo do mestrado, o que mais o animava eram as fontes. Ficou apaixonado em ler e adquirir esse conhecimento de séculos atrás e como eles enxergavam o mundo a partir de uma perspectiva cultural diferente. E das considerações finais, aprendeu a não subestimar as pessoas que estão estudando. “Ah, eles acreditam nisso porque eles eram burros… Não! Vamos ver da onde se fundamenta essas crenças, dentro daquele referencial cultural, é óbvio.”
Isabella conclui que apesar do tema diferente, mesmo que difícil na hora de achar referências, ele abre mais oportunidades. “Tem mais chances de você virar uma referência, o próprio Gabriel por exemplo, sendo minha base”. E defende que é um tema que merece ser estudado, pela sua riqueza como qualquer outro.
Gabriel Braga levou para o seu doutorado, a análise do sobrenatural, a partir de qual momento algo poderia ter sido caracterizado como sobrenatural ou não. Baseando-se novamente em Augustin Calmet, que relata um caso de possessão, para falar de Inquisição e investigar o que de fato é sobrenatural. Já que nem todos os casos poderiam ser vistos como algo verídico, digno de ser chamado de paranormal.
Isabella Rizh, defende o seu TCC sobre Carmilla analisando gênero e o vampirismo em fevereiro de 2025. Ela também espera continuar estudando o assunto de vampiros no mestrado no futuro, analisando nesse nicho, o gênero, sexualidade e euro orientalismo.